domingo, novembro 26, 2006

Viagem no tempo

A pedido de alguém, cá está uma dissertação sobre os meus dez anos. Aproveito para dizer que, enquanto a escrevi, fiz uma deliciosa viagem no tempo.
Creio que, invariavelmente, todos nós temos algo a dizer da época mais peculiar da vida. Aquela que dispensa apresentações por ser a base de tudo o resto, por meio de memórias aprazíveis ou não. Quando se é criança parte-se, ainda que inconscientemente, à aventura de um mundo onde nunca ninguém soube explicar quais os fundamentos que o sustentam. Na verdade, à medida que ser-se criança preenche um horizonte profundamente cobiçado mas já excedido, a vida vai fazendo questão de ser a pedagoga da pedagogia, ao ensinar-nos que o que importa não é conhecer-lhe as origens mas antes testar-lhe os limites. Talvez este seja o cerne infantil, não conhecemos limites mas queremos incorporá-los, vivendo-os inocentemente. Esta divagação poderia avolumar o meu intelecto horas a fio, mas quero conduzi-la à vivência dos meus dez anos.
Quando penso nesta etapa, aflui-me à mente um amontoado de sensações, que seria uma acto vil e vão, tentar expressá-las. Lembro-me que, a partir daquela época, a vida começava a ter gosto. Não sabia à inocência das histórias de embalar dos saudosos cinco anos, mas tinha um gosto integral que nunca mais protagonizei. Naquela idade, começei a tomar um rumo distinto daquele que tinha até aí. O baú de memórias, hoje sei, estava aos poucos a amontoar-se. As peripécias que passei dentro daquele portão, projectavam-se na minha vida fora de lá. O jardim-de-infância, os picotados e o bibe que depois deram lugar à escola primária, aos livros e à veste não trajada, passaram a estar encaixotados aos pedacinhos na minha mente. As brincadeiras inocentes e que no mundo dos crescidos são irrisórias; as saídas da escola no dia da espiga; os intervalos, sempre tão deliciosos, passados a correr nas traseiras; o primeiro beijo a medo mas único e irrepetível; o facto de ver um avião a cruzar os céus e pasmar-me com a sua imponência; fitar, a preceito, a professora enquanto ela me expunha as operações numéricas; descer as escadas a uma velocidade estonteante para ser a primeira a chegar aos baloiços; divagar pelo episódio do dartacão que passava na televisão enquanto eu mordiscava, a custo, pão e bebia leite; fazer birra e chorar de peito aberto porque era a única forma de tentar impor a minha vontade. Enfim, guardo uma imensa nostalgia de tudo isto. Até de quando caía porque o meu pai largava, antecipadamente, o assento da minha bicicleta ou porque o meu irmão descia os íngremes valados ao pé de casa e eu queria ir atrás, julgando-me capacitada da mesma façanha. O resultado eram muitos hematomas, pontos nos lábios, mas sobretudo muito contentamento. As dores fustigavam-me o corpo mas a alma, essa, estava acalentada.
Por todos estes motivos e por muitos mais, a minha infância é o porto de abrigo de mim mesma. O meu refúgio de quando o mundo dos crescidos não faz sentido. Os momentos marcantes da vida estão nas coisas lineares. Tenho saudades. Muitas. Contudo, gosto de as ter porque sei que todos aqueles sentimentos estão guardados dentro de mim e me ensinam, a cada segundo, que só fazem sentido como sendo uma saudosa e eterna contemplação. Por isso vivo e refugio-me neles quando tudo resto parece andar à deriva.
Às vezes estes momentos inundam-me numa espécie de exocitose psíquica e é então que preenchem o meu mais ínfimo complemento.

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